A Reserva Cognitiva como um fator de estilo de vida saudável

Através da observação clínica repetida e dos resultados de vários estudos, verificou-se a inexistência de uma relação direta entre o impacto da patologia ou da lesão cerebral e as suas manifestações clínicas (Stern, 2002; Varangis & Stern, 2020). Ou seja, constatou-se que, pessoas em que a extensão e a magnitude das alterações cerebrais relativas à idade, à doença ou à lesão cerebral eram semelhantes apresentavam desempenhos cognitivos e funcionais diferentes, dando-nos a perceber que existem fatores individuais que estão associados a estas diferenças. É neste enquadramento que surge o conceito de reserva cognitiva (RC), apresentando-se como um elemento moderador entre os efeitos da neuropatologia e as suas manifestações clínicas.

Dito de outra forma, a RC explica, parcialmente, a capacidade que o cérebro tem para “minimizar” o impacto de uma doença, de uma lesão cerebral ou das alterações associadas à idade, possibilitando que a pessoa mantenha, por mais tempo, uma boa resposta cognitiva e funcional no seu dia-a-dia, apesar das alterações observadas ao nível do tecido nervoso.

Desta forma, a RC permite-nos dizer que o cérebro lida ativamente com a lesão ou a patologia cerebral pelo envolvimento de recursos de processamento cognitivo pré-existentes à lesão e/ou pelo envolvimento de estratégias compensatórias (recrutamento de redes neurais para compensar a disfunção das que foram afetadas) (Stern, 2002). Isto significa que a lesão ou a patologia cerebral pode ser associada a comprometimento cognitivo e/ou funcional, mas o nível deste comprometimento, a sua manifestação clínica e os recursos face à recuperação não estão apenas dependentes de aspetos morfológicos ou da estrutura cerebral, mas também do modo como o tecido cerebral saudável é usado (Stern, 2020). Até porque, o uso que se dá é o que permite estabelecer redes de conexão neural e é esse conectoma[1] que dá suporte à resposta cognitiva e à funcionalidade.

Assim, é natural que exista variabilidade inter-individual na RC, pois esta é modulada pela interação dos recursos biológicos e as experiências, ambientes e contextos a que a pessoa é exposta ao longo da vida. O que nos remete para a natureza dinâmica, mutável e moldável da RC e, por conseguinte, que todas as pessoas podem e devem ter um papel ativo no desenvolvimento e robustecimento da sua RC.

Contudo, sendo a RC um conceito abstrato, de que forma é que a podemos desenvolver e fortalecer? Neste sentido, têm sido associadas à RC diversas atividades e/ou tarefas, como a escolarização, a profissão, as atividades de lazer e as atividades cognitivamente estimulantes como o exercício físico, a jardinagem, passear, viajar com amigos, as interações sociais (amigos, família, vizinhos e outros), fazer voluntariado, o uso de novas tecnologias, fazer charadas, resolver desafios lógicos, ler livros, jornais e/ou revistas, a escrita criativa, ouvir música ou tocar um instrumento musical, pintar, ir ao cinema, etc.. A ideia é que cada pessoa possa diversificar os estímulos de forma consistente e ajustada a si mesmo.

Por isso, o que é sugerido é ter-se um estilo de vida onde se possa incluir a combinação de algumas destas atividades. Posto isto, considerando que a RC atua como neuroprotecção, pode ser encarada como um elemento a integrar num estilo de vida saudável, não de forma direta claro, mas indiretamente, por via do nosso envolvimento em experiências, atividades e/ou tarefas neuroestimulantes e neurodesafiadoras ao longo da vida.

Dra. Dulcineia Boto, Cédula Profissional nr. 14875

[1] Conectoma é o termo utilizado para descrever um mapa completo de conexões neurais no sistema nervoso central de uma dada espécie (Haueis, & Slaby, 2017).